segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Blackout

  Tudo estava escuro.
  Não que Alícia tivesse medo, pelo contrário. Ela tinha medo de muitas coisas: insetos, palhaços, trovões, mas não do escuro. Por isso que levantou da cama sem hesitar para ir à cozinha beber água, levando consigo seu urso Senhor Pelúcia, ela não tinha medo de andar sozinha no escuro, mas apreciava uma companhia.
  Se seus pais soubessem o que ela fazia para conseguir beber água no meio da noite com certeza a deixariam de castigo. Primeiro, ela arrastava a cadeira até a pia, subia em cima do assento e depois na bancada, podendo finalmente alcançar o armário onde ficavam os copos. Depois de servir a água da geladeira, repetia o processo para guardar o copo.
  E, aquela noite poderia ser como qualquer outra em que, assim que terminasse de beber, voltaria ao quarto para dormir. Mas quando estava atravessando o corredor para voltar, ouviu um barulho.
  Era alto, e parecia vir de todos os lados. Batidas repetidas.
  Alícia tampou os ouvidos, esperando o barulho parar, mas não adiantou. Ela estava com medo. Que barulho era aquele, onde estava sua mãe? Sua mãe.
  -Mamãe!!! – ela gritou, as lágrimas brotando em seus olhos. O barulho imediatamente para. Ela destampa os ouvidos. – Mamãe?
  -Tem alguém aí dentro? – Alícia ouve uma voz de mulher vindo da porta.
  -Mamãe? – ela chama de novo, caminhando pelo corredor em direção à voz.
  -Eu... Eu não sou sua mãe.
  -Onde tá a minha mamãe? – A garotinha se aproxima mais e mais da porta. Está perto o suficiente para ver uma silhueta através do vidro.
  -Eu não sei... Você ta sozinha?
  -Eu quero a minha mamãe... – Alícia começa a soluçar, já não consegue mais conter as lágrimas. Ela senta no chão e encosta na porta, abraçada ao urso. A figura do outro lado agacha e deposita a mão na porta.
  -Ei, não chore... Se você me deixar entrar eu ajudo a encontrar sua mamãe. Me desculpe, eu não queria te assustar... – Sua voz falha e ela começa a chorar também.
  -ALÍCIA! – um grito familiar ecoa do lado de fora e dessa vez a menininha reconhece a voz.
  -Dani! – ela grita de volta, ficando de pé. Ela começa a bater na porta, vendo agora duas silhuetas do lado de fora.


***

  Marta acordou pensando que aquele dia seria como qualquer outro. Ela se arrumaria, iria para o hospital e atenderia pacientes até a noite, quando voltaria para casa para dormir.
  Ela se olhou no espelho do banheiro, sentindo pena de si mesma. Novamente passou a noite em claro. As luzes do poste do lado de fora da janela e do abajur ao lado da cama não foram suficientes. Elas nunca eram.
  Lavou o rosto e passou a maquiagem em cima das olheiras, parecia que a cada dia que acordava elas só cresciam, mas ela já não se importava mais. Seu cabelo também estava crescendo rápido.
  Ninguém vai reparar na sua aparência quando estiver deitada no caixão... Ela afastou o pensamento, o hospital precisava dela, as crianças precisavam dela. Saiu do banheiro e foi se arrumar.
  Depois de comer, pegou a bolsa e as chaves, trancou a casa e entrou no carro, dirigiu até a garagem do hospital.
  Era cedo, passou pela recepção e cumprimentou a jovem mulher que trabalhava ali.
  -Bom dia Cassandra. – ela sempre trabalhava com o cabelo crespo preso em um coque, muito bem maquiada.
  -Bom dia Doutora Hioko, trouxe um guarda-chuva? Eu soube que vai chover hoje.
  -Se for verdade, acho que vou me molhar um pouco mais tarde. Já tem algum paciente pra mim?
  -O pronto-socorro tá estranhamente calmo hoje.
  -Boas notícias pra todo mundo então. – Cassandra abriu um sorriso. – Estarei na minha sala, se surgir alguém pode mandar. – ela assentiu e Marta foi em direção a sua sala. Fechou a porta atrás de si e despencou na cadeira. Ela não gostava de dias assim, vazios, sem nenhum paciente. Não gostava de ficar sozinha com a própria mente. Ela era uma pessoa ruim por desejar a doença de uma criança? Para não ter que aguentar a si mesma?
  Não. Estava sendo egoísta de novo. Se não havia crianças, elas estavam todas bem. Elas era uma médica pelo amor de Deus, sempre deveria pensar nos outros antes de si mesma.
  Seus pensamentos foram atrapalhados pela luz, que piscou. A princípio, pensou ter imaginado, mas a lâmpada solitária no teto piscou de novo. Sua respiração começou a falhar.
  Ela tentou recuperar o ar.
  -Está tudo bem. – repetia para si mesma.
  Não soube quanto tempo ficou assim, ou quando a luz parou de piscar, foi interrompida por três batidas na porta e logo em seguida Cassandra surgiu. Marta tentou parecer menos miserável, mas falhou considerando o jeito que a secretária a olhou.
  -Doutora, a senhora ta bem? – preocupação genuína em seu rosto.
  -Sim. – Marta respondeu, se arrumando na cadeira. – Por que eu não estaria?
  Cassandra abriu a boca para dizer algo, mas logo a fechou, acenando um papel e entregando para a médica.
  -Você tem uma paciente. – Ela leu o papel.
  -Mande-a entrar. – Cassandra saiu e fechou a porta.
  O papel era uma breve ficha da criança que virá a ser atendida, tosse e dores no corpo.
  A porta se abriu e dela pareceram uma mulher loira e bem vestida, com uma menina abraçada na sua perna, com a mesma cor de cabelo e olhos verdes bem claros. As duas se sentaram em frente à médica.
  -Bom dia, Verônica e Alícia? – a mulher assentiu. – O que temos aqui, como está se sentindo Alícia?
  A menina tinha uma expressão cabisbaixa e, como era de se esperar, a mãe respondeu:
  -Eu a busquei na escola, ela estava reclamando de dor no corpo inteiro, na cabeça e não parava de tossir. – como se passe provar que era verdade, a menina tossiu. – Mal consegue ficar em pé.
  Marta fez os procedimentos habituais, ouviu o coração, examinou os olhos, a pele e a garganta.
  -Ela está com gripe, nada demais. – a mãe suspirou de alívio. – Vou receitar um remédio e muito descanso. – ela escreveu no papel e entregou para ela.
  -Obrigada doutora. – a mãe agradeceu.
  -Tchau. Tchau Alícia. – Marta acenou para a garotinha, mas ela não respondeu, apenas deixou a sala grudada na mãe. Ela voltou a se sentar e soltou um suspiro. Olhou no relógio: 9h35min.
  Outra batida soou na porta, Cassandra novamente, mas dessa vez com quatro fichas na mão. Ela agradeceu silenciosamente por poder se ocupar.
  O dia correu do mesmo jeito, com pausas periódicas entre as consultas. Quando Marta olhou novamente no relógio já eram 21h. Mais uma hora e finalmente poderia voltar para casa.
  Encostada na cadeira contemplou o teto. Gostava do trabalho que tinha, mas não podia evitar de sentir inveja das mulheres que entravam pela porta, sempre sentiu a vontade de ser mãe, mas nunca teve a oportunidade e agora já era tarde demais. Quarenta e cinco anos era tarde demais.
  A luz começou a piscar de novo. Dessa vez, ela não se importou, tendo a certeza de que logo pararia. Mas em vez disso, ela apagou.
  Marta pulou da cadeira, assustada. Escuro era o que seu cérebro gritava. Sua mão alcançou a bolsa e pegou o celular, ligou a lanterna que o aparelho tinha e iluminou a sala.
  A mesma mesa, a mesma cadeira, a mesma maca. Ainda era a mesma sala. Seu coração começou a desacelerar.
  Ela levantou e andou até a porta, a abriu e percebeu que o corredor do hospital também estava escuro e vazio.
  Marta sabia que uma situação dessas jamais aconteceria, quando fez a entrevista para trabalhar naquele hospital, perguntou se o lugar possuía geradores. Ali jamais faltaria luz e ainda assim Marta se encontrava no escuro.
  Com a bolsa no braço e o celular na mão com a lanterna apontada para frente, ela saiu da sala e começou a caminhar em direção à recepção.
  A sala de espera estava igualmente vazia, não parecia o mesmo hospital no qual ela chegara naquela manhã. Ela espiou pelas portas de vidro, a rua igualmente escura.
  Antes que pudesse sair, ouviu um barulho vindo atrás do balcão das secretárias. Ela se aproximou lentamente e espiou por cima do balcão. Cassandra estava deitada, o uniforme branco manchado de vermelho na barriga. Marta contornou o balcão e agachou ao lado da secretária.
  -Oh meu Deus, o que aconteceu? – ela começou a pressionar na mancha. A mulher respirava ofegante.
  -Doutora... Eu não sei, eu... Uma hora tudo estava bem e então a luz apagou e as pessoas ficaram malucas... – ela gemia de dor enquanto falava, lágrimas escorriam pela bochecha. – eu acho que matei alguém...
  -Calma Cassandra. Você tem que continuar pressionando. Consegue andar? – a secretária mordeu o lábio e segurou o braço de Marta, sua voz soou urgente.
  -Doutora, você tem que sair daqui. O homem... Que fez isso, ele ainda ta aqui... Você tem que ir.
  -Não vou te deixar aqui pra morrer. – Um tilintar interrompeu as duas. Marta espiou por cima do balcão um cirurgião, armado com dois bisturis.
  Cassandra começou a fazer esforço para levantar.
  -Você tem que ir! – usando todas as suas forças, ela se levantou e empurrou Marta em direção às portas de vidro, seu corpo as atravessando e caindo na calçada do lado de fora. Enquanto tentava se recompor, viu que a secretária recebia incontáveis estocadas com o bisturi.
  Marta se levantou e tirou o excesso de cacos do corpo, olhou na direção de Cassandra, que a olhava de volta, e correu.
  O celular apontado para frente, iluminando o caminho até o estacionamento, precisava alcançar seu carro.
  Ao chegar, se atrapalhou para pegar as chaves. Destravou o alarme e sentou no banco do motorista. Trancou as portas.
  Testou a lâmpada interna do carro e ficou feliz que ainda funcionava. Seu coração batia forte dentro do peito. Quem era aquele homem e por que ele atacou a Cassandra daquele jeito? O que estava acontecendo? Por que tudo estava escuro? Muitas perguntas sem resposta.
  Ela poderia ter ficado dentro do carro, tentando se acalmar por muito mais tempo, mas outra pessoa maluca pulou no para-brisa. Em reflexo, ela ligou o motor e acelerou.
  A pessoa, uma mulher, bloqueava sua visão. Marta foi obrigada a dirigir em zigue-zague até que finalmente se livrou do corpo. Só para encontrar uma visão ainda mais assustadora.
  A cidade estava um caos, postes e vidros quebrados espalhados pelas calçadas, incêndios em todas as direções. E as correndo umas atrás das outras armadas com qualquer coisa que considerassem letais.
  Em poucos segundos, as mais próximas do carro viraram sua atenção para ela. Marta acelerou sem hesitar e dirigiu pelas ruas, atropelando qualquer coisa e qualquer um que estivesse em sua frente. Ela não sabia o que estava acontecendo e queria sair daquele lugar o mais rápido possível.
  As pessoas foram diminuindo conforme ela foi se distanciando do centro e eventualmente da cidade. Sua respiração só se normalizou quando a estrada em sua frente ficou completamente vazia.
  Marta pensou que finalmente estava segura, mas ao fazer uma curva, as luzes do farol iluminaram uma pessoa no meio da estrada, ao contrário do que fez na cidade, ela desviou e o carro bateu de frente com uma árvore.
  Sua cabeça bateu no air bag que explodiu no momento do impacto e ela perde a consciência por alguns segundos.
  Quando acorda, não tem muito tempo para pensar. A pessoa que provocou o acidente agora se aproximava do carro. Marta deixou-o chegar bem perto da porta, para assim abri-la e acertá-lo. Depois disso, correu por uma trilha perto de onde sofrera o acidente.
  Não demorou muito para encontrasse uma casa. Seu desespero a levou a dar batidas fortes na porta. Ela não sabia se pessoas ainda moravam ali, mas tudo o que podia fazer era bater.
  Ela só parou quando ouviu a voz de uma criança.
  -Mamãe?
  -Tem alguém aí dentro? – Marta perguntou.
  -Mamãe? – ela ouviu de novo.
  -Eu... Eu não sou sua mãe.
  -Onde tá a minha mamãe? – Marta não sabe a que distância a criança está da porta.
  -Eu não sei... Você ta sozinha?
  -Eu quero a minha mamãe... – ela ouve soluços se aproximando da porta e em pouco tempo consegue identificar um pequeno corpo encostado no vidro. Marta se agacha ao lado da criança e deposita sua mão na porta.
  -Ei, não chore... Se você me deixar entrar eu ajudo a encontrar sua mamãe. Me desculpe, eu não queria te assustar... – sua voz falha e ela começa a chorar também.
  -ALÍCIA! – uma voz masculina grita e assusta Marta. Ela se vira em direção à trilha e vê um homem se aproximando rápido.
  -Dani! – a criança grita de volta, dentro da casa.
  O homem se aproxima e Marta o ilumina com a lanterna, ele segura um pedaço de madeira em posição defensiva. Sua aparência é jovem, apenas um adolescente.
  -Se afaste da porta. – ele diz apontando o porrete em direção à médica. Ela ergue as duas mãos.
  -Eu não quero machucar ninguém... Eu só quero um abrigo, a cidade tá um caos... Não tenho pra onde ir.
  -Você não foi afetada? – Ela assume uma expressão de confusão e ele baixa o porrete. – Eu te deixo entrar, eu moro aqui.

***
  Danilo acordou desnorteado. Ficara até tarde acordado na noite anterior e não fazia ideia de quanto tempo havia dormido.
  Pela luz que vinha da janela, já não deveria ser tão cedo. Talvez fosse até depois do meio-dia. Ele não sabia e não se importava.
  Quando finalmente cansou de ficar deitado na cama, levantou e olhou as horas no celular: 13h03min. Era muito tarde.
  Ele espiou no quarto da irmã e viu que ela dormia profundamente. Estranho, a menina normalmente era muito ativa de dia. Danilo deixou-a dormir.
  Foi direto na cozinha, estava com fome. Reparou que na geladeira havia recadinhos pendurados:
  "Sua irmã ta doente deixa ela dormir"
  "Tem comida no pote vermelho a empregada ta de folga hoje"
  "Não esquece da festa de hoje a noite"
  A festa, Danilo lembrou. Hoje teria que acompanhar a mãe e Augusto em uma confraternização do lugar onde ele trabalha. 
  Depois de onze anos, a mãe casou-se de novo com um cientista. Sua vida mudou completamente depois disso: a irmã nasceu logo depois e sempre que um dos cientistas fazia algo incrível, sempre havia uma festa para comemorar. Danilo não tinha certeza do motivo desta que ele ia, só sabia que não queria ir.
  Sua mãe sempre o convencia a ir, para que ele fizesse companhia a ela enquanto Augusto conversava com as pessoas. No começo, talvez fosse para isso, mas eventualmente ela se acostumou com todas aquelas pessoas e ele já não era mais necessário.
  Mas ele não podia fazer nada, então ia mesmo assim.
  O dia passou bem lentamente. Com a irmã dormindo e o namorado não respondendo as mensagens, tudo o que ele fez foi assistir TV e eventualmente checar o celular.
  Sua mãe chegou por volta das 16h.
  -Como está sua irmã? – foi a primeira coisa que disse no momento em que entrou pela porta.
  -Dormindo desde que acordei.
  -Ela tomou um remédio e capotou. – a mulher despencou no sofá.
  -O que ela tem?
  -Gripe.
  -Você chamou uma babá?
  Os olhos da mãe foram lentamente se arregalando.
  -Não. – Danilo a encarou, descrente.
  -Mãe!
  -Eu fiquei tão preocupada com ela que me esqueci. – ele viu sua oportunidade ali.
  -Eu fico com ela enquanto vocês dois vão na festa.
  -Não! Eu quero você comigo. – ela rebateu.
  -Nós dois sabemos que você não precisa mais da minha companhia nesses eventos.
  -Você não prestou atenção em mim? – ela depositou a mão em sua bochecha. – Eu posso não precisar de você, mas eu quero você comigo. – ela beijou a testa do filho antes de levantar e ir em direção ao banheiro. Lá de dentro, gritou: - Começa a se arrumar!
  Danilo suspirou e relutantemente, foi para o quarto se vestir.
  Augusto parou o carro em frente à casa perto das 19h. Ele tocou a campainha e esperou os dois saírem.
  Verônica usava um vestido vermelho longo com um corte que a fazia parecer uma deusa grega. O homem sorriu ao vê-la. Danilo saiu logo atrás usando blazer com calça jeans, já não se arrumava muito para as festas. Os dois entraram no carro.
  -Como foi o trabalho hoje? – a mulher perguntou.
  -Estavam todos preocupados com a festa, não tive muita coisa para fazer. E você?
  -Muitos papéis para revisar, mas nada além disso. A festa fez o prédio inteiro parar.
  -E você Danilo? – o garoto levou um pequeno susto com a pergunta.
  -Só fiquei em casa, não fiz muita coisa.
  -E sua irmã?
  -Ela dormiu o dia inteiro.
  Danilo já não prestou mais atenção no que os dois adultos conversavam, estava afogado em sua própria miséria. Eles talvez estivessem discutindo sobre a falta de babá para Alícia.
  A casa ficava a uma boa distância da cidade, e ainda mais longe do centro, onde ficava o escritório em que a festa estava acontecendo. Chegaram lá depois das 19h30min.
  O lugar estava relativamente cheio, com pessoas bem vestidas e quase bêbadas de qualquer fosse a bebida chique que serviam. Nem um banco eles tinham naquele salão. Danilo queria que um raio atingisse aquele prédio.
  Um tilintar ecoou pelo salão e a atenção de todos se voltou para um homem no topo da escada. Que ótimo, um discurso! Danilo pensou, Tudo o que eu precisava pra dormir de pé!
  Era um homem alto e magro, não parecia ter mais que 40 anos. Era careca e usava um anel dourado na mão que segurava a taça. Danilo o reconheceu de outras festas, era bem próximo de Augusto.
  As pessoas pararam de falar para prestar atenção nele.
  -Boa noite senhoras e senhores. Obrigado por comparecerem à minha comemoração. Acho que a maioria sabe, mas para aquele que não: ontem eu fiz uma descoberta incrível! O conhecido vírus da raiva possui propriedades positivas para ajudar no tratamento do câncer de mama!
  Todos aplaudiram. Danilo ficou impressionado.
  “Mas não é por isso que chamei todos aqui. Eu passei muitos anos manipulando este vírus e finalmente consegui usá-lo a meu favor. Todos aproveitaram as bebidas?” Ouviu-se um “sim” coletivo. O homem sorriu, mas não era um sorriso de felicidade, Danilo percebeu algo mais sinistro.
  -Que bom, pois estou feliz em informar que todos os que apreciaram a bebida serão minhas cobaias vivas a partir de agora.
  A atmosfera ficou mais pesada, as pessoas já não estavam mais felizes.
  -O que quer dizer? – ouviu-se uma voz.
  -Que a qualquer momento, a partir de agora, vocês se tornaram máquinas de matar.
  O barulho de vidro quebrando ecoou pelo salão, todos estavam tensos. A mãe de Danilo agarrou seu braço. Ele se virou para ela.
  -Vá embora. – ela não estava pedindo. Danilo sabia que era uma das poucas pessoas, senão o único, a não ter tomado nada. Sua mãe o beijou na testa de novo e ele começou a andar lentamente em direção à porta.
  Com o coração acelerado, ele deixou o salão. Ao olhar para trás, viu as pessoas fazendo o mesmo, mas as portas se fecharam sozinhas. Ele voltou e começou a martelar os punhos na madeira, mas nada aconteceu. Gritos ecoaram do outro lado.
  Ele pegou uma cadeira e estava prestes a tentar a derrubar a porta com o objeto quando foi obrigado a parar. O homem que havia anunciado a notícia estava observando.
  -Você é o filho do Augusto né? – o garoto foi baixando a cadeira lentamente.
  -Não. Ele só é casado com a minha mãe.
  O homem colocou a mão dentro do casaco e tirou uma pistola, apontando para Danilo.
  -Você conseguiu sair, mas não vai escapar. Em breve eu irei cortar a luz e liberarei os sobreviventes do salão. O efeito funciona se você está perto deles também, a cidade não tem nem chance de se preparar. Por isso você morre aqui.
  -Por quê? Por que você fez isso? – o homem sorriu e deu uma pequena risada.
  -Ora, porque eu posso.
  Danilo não esperou, jogou a cadeira no homem e saiu correndo. Ouviu os tiros sendo disparados, mas não olhou para trás. Atropelou a porta das escadas e desceu apressadamente os degraus.
  Sua mente alternava entre sua mãe e sua irmã. Tinha que voltar para casa e fugir para qualquer lugar longe da cidade.
  Ele correu pelas ruas vazias da cidade, as pessoas não sabiam o que as aguardavam, mas ele não poderia simplesmente sair gritando que uma horda de pessoas raivosas estava prestes a ser liberada. Ia ser preso e considerado um maluco qualquer.
  Ele apenas correu.
  Quando finalmente alcançou a estrada, seus pulmões gritavam por ar. Ele parou para respirar e ao olhar para trás, é quase pego por um carro que vinha em alta velocidade. A pessoa que dirigia foi rápida o suficiente para desviar no último segundo e bater em uma árvore próxima. Danilo correu para ver se a pessoa estava bem.
  Quando estava próximo o suficiente da porta, a pessoa de lá de dentro o acertou com a mesma, derrubando-o no chão. Ele a viu fugir pela trilha próxima, que iria direto para a sua casa.
  Ele procurou alguma coisa com que pudesse bater e correu atrás. A boa notícia era que a pessoa não estava em um ataque de raiva, pois o teria atropelado sem hesitar. A má notícia era que ele não sabia quem era ela e o que ela queria indo em direção à sua casa.
  Danilo usou todas as suas forças e correu pela trilha. Ao chegar perto da casa, viu a figura agachada na porta.
  -ALÍCIA! – ele gritou.
  -Dani! – ouviu a irmã gritar de volta de dentro da casa.
  Ele se aproximou e foi cumprimentado pela luz da lanterna da pessoa. Ele ergueu o porrete em posição defensiva.
  -Se afaste da porta. – ele diz apontando o porrete em direção à pessoa. Ela ergue as mãos e desvia a luz dele.
  -Eu não quero machucar ninguém... Eu só quero um abrigo, a cidade tá um caos... Não tenho pra onde ir. – uma voz de mulher, à beira do desespero.
  -Você não foi afetada? – Ela assume uma expressão de confusão e ele baixa o porrete. – Eu te deixo entrar, eu moro aqui.
***
  -Eu conheço ela. – Alícia declara, enquanto os três estão sentados na mesa da cozinha, Marta tomando água. – É a médica.
  -Você foi no hospital hoje, eu me lembro. – ela tentou parecer calma, mas podia sentir sua mão em volta do copo tremendo.
  -Você tinha um nome engraçado, eu li. Eu tenho cinco anos e já sei ler. – a garotinha soou orgulhosa.
  -Ali, você pode buscar as velas no quarto da mamãe? – ela assentiu e levantou da cadeira em um pulo. – Nome engraçado? – Danilo se dirigiu à Marta.
  -Deve estar falando do meu sobrenome. Marta Hioko. – seu rosto estava sombreado pela lanterna do celular, mas ele finalmente reparou nos olhos puxados da mulher. – Eu atendi ela hoje de manhã no hospital hoje.
  -Meu nome é Danilo. Como você achou a minha casa?
  -Eu estava fugindo da cidade, vi pessoas atacando umas às outras e vi uma colega de trabalho morrer na minha frente. – seu lábio inferior tremeu.
  -Mas você não sentiu vontade de matar ninguém? – Marta estranhou a pergunta. O garoto sabia de alguma coisa.
  -Não.
  Alícia retornou saltitando na cozinha com as velas no braço. Danilo as pegou e acendeu duas.
  -Onde ta a mamãe? – ela perguntou.
  -Ela foi numa festa com o seu pai, mas logo, logo ela volta. Enquanto isso, quer que eu leia uma história pra você dormir? – ela assentiu.
  O garoto a pegou no colo e a levou no quarto. Marta achou tudo aquilo muito curioso. Ela observou a vela queimar até que ele retornasse para onde ela estava.
  -Eu preciso te pedir um favor. – ele entrou na cozinha. – Quero que cuide da minha irmã enquanto eu vou buscar a minha mãe.
  -Não posso deixar você fazer isso. – ela respondeu, se levantando para encará-lo.
  -Não estou pedindo sua permissão. Ainda tem uma pequena chance da minha mãe ter sobrevivido e eu vou me agarrar a essa chance.
  -Você fala como se soubesse o que está acontecendo.
  -Porque eu sei! – ele cerrou os punhos. – Eu estava em uma festa com a minha mãe e tinha esse cientista maluco que fez todo mundo ingerir um vírus e tornou todos em assassinos descontrolados, incluindo minha mãe.
  Marta sentou-se de novo. Era uma informação muito chocante para sua cabeça. Era tudo uma experiência. E agora um garoto estava disposto a sacrificar tudo pela minúscula chance da mãe ainda estar viva. Ela queria abraça-lo, mas se conteve.
  -Eu fico. Mas se fica muito perigoso, você tem que voltar. Sua irmã precisa de você.
  -Obrigado. – ele se armou com três facas da gaveta e saiu na escuridão.
  Marta se encontrava sozinha e no escuro de novo. Ela pegou o celular e uma vela e foi até o quarto da menina. Ao entrar, percebeu que ela estava acordada.
  -Onde o meu irmão foi? – ela estava abraçada com um urso, com o rosto preocupado.
  -Ele foi buscar sua mamãe.
  -Mas por que meu papai não pode trazer ela?
  -Ele tá ocupado e pediu pro seu irmão ir buscá-la. – a garotinha comprimiu os lábios, acreditando com certa relutância. E Marta sentiu pena da menina. Os pais provavelmente mortos e o irmão não planejava voltar. Sem perceber, já estava chorando.
  -Por que você ta chorando? – ela secou as lágrimas rapidamente.
  -Eu... Tenho medo do escuro. – contar uma mentira com uma verdade era sempre mais fácil.
  -Eu não tenho. Se você quiser abraçar o Senhor Pelúcia, eu deixo. Ele me ajuda quando ta chovendo e tem aqueles barulhos de trovão. – a menina entregou o urso para Marta e ela o segurou. Por um momento, seu coração pareceu mais leve.
  Ela se juntou à menina e se deitou ao seu lado na cama. Alícia falava sobre tudo com ela e Marta quase se sentiu como uma mãe para ela. Sentiu a nostalgia de algo que nunca teve.
  Quando estava no terceiro ano da faculdade de medicina, se apaixonou por um dos colegas de turma. Os dois namoraram até a formatura, quando ele a pediu em casamento. Foram bons anos ao seu lado, mas tudo mudou quando foram morar juntos.
  O homem carinhoso e sensível por quem havia se apaixonado já não existia. Ele a forçava a trabalhar em casa e a servi-lo, a fez abandonar o emprego para se dedicar somente a ele. E se fazia algo que não gostava, respondia de maneira que ele não gostava, ele a prendia em um quarto pequeno e escuro nos fundos da casa.
  Marta viveu assim por quase vinte anos, quando finalmente um vizinho ouviu seus gritos e denunciou o marido. Ele continua preso, mas o trauma da escuridão nunca a deixou de verdade.
  O desejo de construir uma família parecia bobeira comparado ao cárcere em que viveu. Se ao menos soubesse quem ele era antes de tudo aquilo.
  Seus pensamentos foram interrompidos por um barulho alto. Alguém havia entrado na casa.
  Marta levantou rapidamente e espiou pela porta, um homem estava parado na sala, e não parecia que era o pai de Alícia ou Danilo. Ela pegou o abajur silenciosamente e abriu a porta. Aproveitou que ele estava de costas e bateu com o objeto em sua cabeça. Ao iluminar o rosto do homem, não o reconheceu como Danilo e não queria confirmar como o pai da menina.
  Sacudiu e acordou Alícia.
  -Acorde, acorde! – olhos sonolentos a encararam. – Precisamos ir Alícia.
  -Por quê? – falou de um jeito arrastado.
  -Danilo quer que o encontremos na cidade, vamos. – Marta pegou a menina no colo e saiu pela porta, reparando agora que estava arrombada.
  Ela só tinha um objetivo em mente: buscar Danilo e ir embora com os dois, ele querendo ou não. Foi uma ideia estúpida deixar um garoto ir sozinho em uma missão suicida.
  Talvez fosse bom que ela não fosse mãe afinal.
  Checou a garagem e não encontrou nenhum carro, se vendo obrigada a andar de volta à cidade.
E, com a menina no colo, andou. Sempre iluminando o caminho com a lanterna e atenta aos barulhos à sua volta. Alícia dormia apoiada em seu ombro.

***
  A lua brilhava no céu quando Marta se aproximou da cidade. O lugar estava estranhamente quieto. A menina ainda dormia em seus braços.
  Ela avistou uma loja completamente depredada a poucos metros de onde estava. Caminhou cautelosamente até lá e entrou. Tudo o que encontrou eram pedaços de vidro. Ela avistou o balcão de atendimento e colocou a menina sentada atrás, para que qualquer pessoa que passasse não a visse.
  Com cuidado, acordou Alícia.
  -Onde a gente tá?
  -Escondidas. Danilo quer brincar de esconde-esconde, então eu preciso que você fique aqui enquanto eu vou procurar ele, entendeu? – a menina assentiu. – Não saia daqui por nada, ou vai perder o jogo tá bom?
  -Tá.
  -Eu já volto.
  Ela caminhou até a entrada da loja e se certificou de que a menina estava escondida, então saiu caminhando pela rua.
  Não era uma cidade muito grande, mas tinha um tamanho razoável para ser quase impossível achar alguém somente andando. Ela não tinha nenhuma referência de onde procurar, então preferiu ir até o centro.
  Ao longo do caminho, conseguia ver pedaços de corpos jogados pelo chão. Tentou ignorar a visão.

***
  Depois de andar muito, Marta se viu em uma rua larga, próxima ao hospital. Ela sempre passava de carro ali quando ia trabalhar. A poucos metros à sua frente estava Danilo sentado, e uma mulher se aproximando com um cano nas mãos apontado para ele.
  Ela queria hesitar, aquela poderia muito bem ser a mãe dele. Mas quando se é médica, você se acostuma com as decisões difíceis, e neste caso, a vida do garoto valia mais do que a da mulher. Ela correu na direção deles e usou todo o seu corpo para empurrar a mulher.
  As duas então começam um combate, com Marta sempre deferindo os golpes que ela tentava dar com o cano. Ela queria ganhar tempo para que Danilo fugisse.
  -Corre! – ela conseguiu gritar enquanto tentava imobilizar a adversária. – Deixei sua irmã em uma loja perto da estrada! – logo em seguida foi atingida por uma cotovelada, sua visão ficando turva.
  A mulher estava pronta para desferir outro golpe, este muito provavelmente fatal. Marta olhou para onde o garoto estava e não o viu. Ele havia conseguido fugir, ela podia morrer em paz.
  Mas o golpe não veio. Em vez disso, ela viu Danilo imobilizar a mulher, com isso ela viu uma abertura para desarmá-la. Agora, armada com o cano, ela mirou nas pernas da mulher, a desequilibrando. No chão, ela bateu uma vez na cabeça, para desacordar.
  Ao começar a correr, puxou Danilo para que fosse com ela, mas ele não se mexeu, ficou apenas observando o corpo imóvel no chão.
  -Ela não ta morta né? – ele perguntou, com a voz trêmula.
  -É sua mãe, não é? – ela não recebeu uma resposta. – Não. – uma pausa – Juntos podemos carregá-la.
  -Não. – e saiu andando.

***
  Marta acordou pensando que aquele dia seria como qualquer outro. Ela levantou, foi até o banheiro e lavou o rosto.
  Caminhou até o outro quarto onde acordou o jovem que dormia, ele se levantou ainda sonolento e juntos foram até o quarto da menina. Ele levando um pacote retangular nos braços e Marta com o computador.
  Ambos sentaram na cama da menina e ele a cutucou:
  -Bom dia Ali, sabe que dia é hoje? – o sono ainda a impedia de raciocinar.
  -Alguém está fazendo doze anos hoje!
  Os olhos da menina foram abrindo-se lentamente enquanto percebia que o aniversário era seu.
  -Eu! – ela levantou em um salto e abraçou os dois.
  -Feliz aniversário! – os dois falaram em uníssono.
  -Obrigada! – ela recebeu a caixa.
  -Danilo e eu discutimos muito sobre o seu presente – os dois se entreolharam. – e chegamos à conclusão de que você merecia.
  Os olhos da menina brilharam quando viu a imagem de um celular estampada na caixa. Ela soltou um pequeno grito de felicidade.
  A atmosfera ficou um pouco tensa, ambos os adultos relutantes em falar. Alícia percebeu.
  -O que foi? – Marta suspirou.

  -É sobre sua mãe... 

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