terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A Bicicleta Abandonada

  Michelle sentou-se apreensiva na cadeira vermelha de veludo da sala do diretor, sua irmã Rita estava sentada ao seu lado em uma cadeira igual. O diretor sentava-se na frente delas, separado por uma mesa de vidro retangular, lotada de papéis, canetas e porta-retratos de família.
  -Estou muito feliz que tenha vindo Michelle, mas eu esperava a mãe de vocês. - A garota comprimiu os lábios.
  -Quando minha mãe está fora, eu sou responsável por ela. - O diretor encarou as duas.
  -Rita, pode por favor esperar do lado de fora? - Ele perguntou.
  -Não! - A menina, que não deveria ter mais de 9 anos, retrucou. Michelle lhe lançou um olhar que a fez mudar de ideia. Ela pulou da cadeira e, antes de sair, fez uma careta em direção à irmã.
  -É exatamente por isso que a chamei aqui. Sua irmã não obedece a ninguém e não faz nada a não ser desenhar. Ela desenha excepcionalmente bem, mas não é para isso que está aqui.
  -Nossa mãe nos cria sozinha, trabalha em dois empregos pra manter uma casa que mal nos cabe, essa é a maneira dela de responder à falta de uma mãe.
  -E eu assumo que você tome o lugar dela na casa. - Michelle assentiu. - Fico muito comovido pela história de vocês, mas tem que dar um jeito de mudar este comportamento.
  A garota suspirou.
  -Eu vou conversar com ela. - Michelle levantou e saiu da sala.
  Ao olhar para o corredor, não viu nada além dos sofás. Onde é que Rita havia ido? Ela saiu correndo em direção à saída e não havia sinal da menina.
  -RITA! - Michelle gritou.

***
  No momento em que Rita pisou para fora da sala do diretor, ela sabia que não podia ficar esperando sua irmã sair. Sobrevivera a vida toda sem ninguém para ajudar, que diferença faria agora? Ela estava decidida de que iria achar um novo lar em que sua mãe apreciasse seus desenhos em vez do seu desempenho na escola e quem sabe, poderia até ter um pai.
  Estava acostumada a ir sozinha para escola, então sabia que caminho fazer até ali, mas sempre quis saber o que tinha depois da escola. O que as árvores que a janela de sua sala escondiam? Ela saiu pelo portão e virou à direita, para um caminho desconhecido.
  Enquanto caminhava, encontrou várias pessoas diferentes: um homem barbudo e barrigudo que quase pisou em cima dela, uma mulher que carregava um bebê (Rita a abordou, pedindo que fosse sua nova mãe, mas perdeu a confiança na mulher quando ela disse que ia levá-la para a polícia) e um casal muito apaixonado.
  Estava anoitecendo e ela ainda não tinha achado nenhuma mãe, estava sendo mais complicado do que imaginara, e nem podia voltar para a sua mãe de verdade pois agora estava perdida. A cidade era muito maior do que o caminho de casa até a escola.
  Rita avistou um parque. Não encontraria uma família humana lá, mas quem sabe uma de esquilos amigáveis, ou até mesmo uma fada. Sua irmã lia histórias assim o tempo todo para ela. Em vez de seguir o caminho de paralelepípedos, Rita foi em meio as árvores. Criaturas como fadas jamais seriam encontradas no meio das pessoas, você tinha que se arriscar no meio da floresta.
  Ela caminhou bastante, mas não achou nem fada e nem esquilo. Já estava ficando com sono e não lembrava mais como sair da floresta, tinha que encontrar algum lugar para dormir. Acabou encontrando uma árvore bem alta com um tronco largo, nela estava acorrentada uma bicicleta. Rita estava com sono demais para se importar com aquilo, abriu a mochila e tirou o casaco de Michelle que ela havia pego mais cedo em casa. Daria um bom cobertor.
***
  Rita acordou com alguém cutucando sua bochecha, em primeiro momento pensou que fosse Michelle lhe acordando para ir na escola, então lembrou que não havia dormido em casa e levantou muito assustada.
  Um adolescente a encarava, ele tinha cabelo loiro e mal cortado e olhos castanhos bem claros, usava roupas sujas e segurava um alicate bem grande.
  -Quem é você? Está perdida?
  -Minha irmã disse para não falar com estranhos! - Rita respondeu e virou de costas.
  -Meu nome é Jasmim, qual é o seu? - Tinha uma voz calma.
  -Jasmim? Isso é nome de fada! - Rita virou para debochar do garoto.
  -É isso que você fazia aqui? Caçava fadas? - Com as bochechas inchadas, ela assentiu. - Onde estão seus pais?
  -Onde estão os seus pais? - Ela rebateu.
  -Eles estão no céu. - Ele disse tristemente.
  -O que vai fazer com esse negócio na sua mão? - Jasmim olhou para o alicate.
  -Vou desprender essa bicicleta da árvore. Estou tentando faz tempo, espero que hoje eu consiga, é o maior alicate que eu tenho.
  -Acho que ela não quer sair de perto da árvore.
  -Mas aqui ela não tem utilidade, se eu conseguir soltar, ela vai poder passear por aí comigo. - Rita não respondeu, ele tinha um bom argumento. - Afaste-se, por que vou usar meu alicate nessa corrente.
  Ele encaixou a ponta da ferramenta e fez força, até que se ouviu um clenk! e a corrente deslizou para o chão. Jasmim desvencilhou a bicicleta e a empurrou para frente e para trás.
  -Quer dar uma volta de bicicleta? Aposto que está com fome. - Ele tirou uma camada de pó do selim com a mão e encarou a menina, ela assentiu.
  Jasmim montou na bicicleta.
  -Me permite levar sua mochila? - Ela tirou a mochila dos braços e ele colocou, aproveitou para colocar o alicate dentro. Em seguida, ela sentou no cano da bicicleta que ligava o selim ao guidão. - Segure firme no meio e deixe as pernas sempre afastadas da bicicleta.
  Ele deu um impulso e logo estava pedalando para fora da floresta, que Rita descobriu que não estava tão longe do caminho de paralelepípedo quanto imaginava. Os dois passaram por ruas que ela nunca havia visto até chegarem a um galpão velho com um letreiro sujo em que se lia "Ophicina".
  Ele parou a bicicleta dentro do galpão e deixou Rita descer primeiro, depois guiou a bicicleta até um canto, onde a deixou encostada.
  -Você mora aqui sozinho?
  -Não, eu moro com o meu avô. Ele deve estar nos fundos. Vem comigo. - Ele estendeu a mão e ela pegou. Jasmim a guiou por entre várias peças de carros até uma porta de ferro no fundo do galpão. Passaram por ela para uma cozinha banhada pelo sol. Um velho estava sentado em uma mesa que ficava bem no centro. Ele era careca, tinha um bigode cinza e usava suspensórios.
  -Você saiu cedo menino! - O velho falou depois de tomar algo em uma caneca de metal. - E quem é esta com você?
  -Essa é... Na verdade, ela não me disse o nome. - Jasmim encarou a menina.
  -Rita. Meu nome é Rita.
  -Que belo nome. - O velhinho sorriu. - Meu nome é Anteu.
  -Vô, tem alguma coisa pra comer? Acho que ela tá com fome.
  -Por que não esquenta leite pra ela? - Jasmim obedeceu. Rita sentou-se na mesa de frente para Anteu. - Você se perdeu dos seus pais?
  -Na verdade eu fugi. - Rita sentiu que podia confiar naquele velhinho simpático. - Eu queria encontrar uma fada na floresta e pedir pra ela me dar um pai e uma mãe, esperei a noite inteira mas ela não apareceu.
  -E por que você não quer mais viver com os seus pais?
  -Porque minha mãe nunca está em casa e minha irmã só fica me falando para estudar quando eu to desenhando. - Rita bufou.
  -Tenho certeza de que elas devem estar muito preocupadas.
  -Eu duvido! Minha mãe trabalha tanto que nem vai perceber que eu sumi e a Michelle só sabe mandar em mim.
  -Não fale assim... - Rita emburrou a cara. O clima foi cortado por Jasmim que trouxe leite quente e um pão com manteiga. A menina comeu com gosto.
  Assim que terminou, Jasmim a chamou:
  -Rita, quer me ajudar a limpar a bicicleta? - Ela sorriu e o seguiu para o galpão, deixando sua mochila em cima da cadeira.
  Os dois começaram levando a bicicleta para a lateral do galpão, onde havia uma mangueira que usaram para limpar o veículo. Depois, eles a guiaram até uma máquina de ar para encher os pneus. Depois disso, Jasmim ajustou o freio. A bicicleta parecia nova e Rita estava orgulhosa de seu trabalho, mesmo que Jasmim tenha feito a maior parte.
  Ela entrou novamente no galpão e encontrou sua mãe e irmã lá dentro conversando com Anteu. Michelle parou no meio da frase quando viu a menina, mas ela saiu correndo para fora.
  Ali perto tinha uma pequena praça, Rita sentou em um dos bancos e agarrou os joelhos, estava chorando. Como elas tinham a achado?
  Um tempo depois sentiu alguém sentando ao seu lado, ela levantou a cabeça para olhar esperando ser sua irmã, mas se surpreendeu ao ver que era Jasmim.
  -O que você quer? - Ela perguntou brava.
  -Quero que volte para sua família. 
  -Não! Elas não se importam comigo!
  -Como não? Sua irmã chorou a noite toda e sua mãe não foi trabalhar de tanta preocupação que ela estava. 
  -Não! !
  -Rita, eu sei que essa não é a família que você queria, mas você lembra da bicicleta que arrumamos hoje? Ela não era das melhores, mas com a nossa ajuda ela parece nova! Pense nela como você, se continuar recusando ajuda, vai acabar presa em uma árvore e esquecida. - Ela o encarou. 
  -Sabe Jasmim, eu pensei que nenhuma fada veio me salvar, mas eu errei. Ela veio sim, mas não do jeito que eu pensei que viesse. - Os dois sorriram e se abraçaram. 

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