Ela então passou os olhos na sala. Nada de extraordinário, até que seus olhos pousaram em uma figura no canto: Lucas. Ela se perguntou como ele conseguia dormir com toda essa loucura acontecendo.
Ela se aproximou e ficou feliz por perceber que não tinha nenhuma marca de mordida. Gisele ficou aliviada, por mais que não o suportasse era bom saber que alguém estava vivo.
Subitamente, um par de olhos negros a encaravam:
-Não acredito que nem dormir em paz eu posso mais. - Ele tirou o ipod do bolso e olhou a tela. - A aula acabou faz um tempo então, tecnicamente, não estou matando aula.
-Não vai ter aula por um tempo.
-Melhor notícia que ouvi essa semana.
-Não quando as aulas são canceladas por uma horda de zumbis. - Gisele tentou passar a impressão de que as aulas canceladas eram a pior notícia e não a parte de saber que seu professor de química provavelmente estava mastigando um de seus colegas.
Tudo o que Lucas fez foi piscar os olhos. Em um movimento rápido, ele olhou pela janela: estava deserto.
-Certo... - disse sem muita fé. - Não sei o que deu em você, mas não gostei. Volte para os seus livros arroto de fanta.
O apelido era novo. Desde que começaram a estudar na mesma sala, Lucas sempre implicou com a cor do cabelo de Gisele e a cada dia ele a chamava por um apelido novo.
-Deixe meu cabelo em paz! Temos um problema de verdade aqui!
Assim que proferiu esta fala, uma parte da porta estourou, revelando três horrendos zumbis arranhando a madeira. Gisele ficou de pé e o ajudou a levantar:
-Temos que sair daqui!
Ela tinha uma resposta para o comentário considerado inútil, mas a segurou dentro da garganta. Não havia tempo para discussões.
Lucas jogou carteiras na direção dos monstros, tento desesperadamente atrasá-los. Eles usavam uniformes que indicavam que eram faxineiros. Gisele tentou pensar rápido. A porta estava bloqueada, então a escolha mais lógica para sair seria a janela.
Janela... Estúpida escola com seus estúpidos ar-condicionados que substituíam as janelas que traziam o ar. Ela olhou ao redor e avistou a mochila do garoto que carregava um skate. Não pensou duas vezes, correu, apanhou o objeto e o jogou contra o vidro que quebrou na hora.
-Vem! - Ela gritou enquanto pulava a janela despedaçada. Lucas pegou a bolsa que estava no chão e pulou habilmente a janela. Resgatou o skate em meio aos cacos de vidro.
-Você sabe que podia ter usado um cadeira. - Ele reclamou colocando a mochila nos ombros. - Aliás, o exército ou sei lá o que, não deveria estar aqui? Se um apocalipse zumbi está realmente acontecendo, o mundo inteiro deve estar sabendo.
-O que nos leva a outra pergunta: como isso aconteceu?
-Um vírus. E eu pensei que você soubesse mais das coisas.
-Eu sei de coisas relevantes, não de ficção científica.
-Deve estar sentindo o arrependimento bater nesse momento. Sorte sua que eu sei uma coisa ou duas sobre zumbis. - Gisele revirou os olhos. Era inacreditável que existisse alguma coisa dentro da cabeça dele. Suspirou.
-O que temos de fazer a seguir, Mestre dos Zumbis.
Antes de que Lucas pudesse responder ao elogio, uma criatura surgiu do seu lado esquerdo, indo diretamente pra cima de Gisele. Ele estava bem perto quando sua cabeça foi atingida. Lucas batera uma vez com a prancha do skate. Bateu de novo, duas, três, quatro vezes, até que o zumbi caiu no chão. Ele bateu novamente só para ter certeza.
-Primeiro, precisamos te arranjar uma arma. - Ela ainda estava congelada na mesma posição com uma expressão de terror no rosto.
-Boa ideia. - Disse por fim. - Onde podemos achar algo assim?
-Vamos ter que improvisar. - Você, obviamente, já está fazendo isso ela pensou. Quem atacaria um zumbi com a prancha de um skate?
Algumas nuvens começaram a encobrir o sol. Gisele o seguiu pelo jardim até entrarem novamente na escola. Era um lugar grande, isso porque ela nem havia mencionado os andares superiores. Os pais de todos os alunos deviam pagar muito bem para terem uma estrutura assim. Era a única escola particular da cidade e por isso ela nutria tanta raiva por Lucas.
Havia começado bem no primeiro dia de aula. Eles foram forçados a fazerem um trabalho em duplas e ele simplesmente não queria saber. Estudar é pra perdedores ele dizia, portanto a considerava uma perdedora. Ela achava o mesmo dele, mas pelo motivo dele simplesmente não querer estudar. Era bem irônico depender dele para sobreviver.
Talvez estivesse apenas sonhando. Quer dizer, estava dormindo na biblioteca mais cedo naquele dia. Então provavelmente ainda estivesse dormindo.
-Olha, acho que devíamos desistir. - Ele parou abruptamente e olhou para ela.
-Quer morrer é?
-Eu já desenvolvi uma teoria de que toda esta situação é parte do meu subconsciente. É um sonho.
Começou com uma soltada de ar e logo se transformou em uma gargalhada alta.
-Você já parou pra pensar no meu lado? Por que pra mim parece tudo muito real. Aliás, pelo que me lembro bem, ainda estávamos em aula quando você apareceu, tava dormindo aonde?
As mãos de Gisele umedeceram. Ela sentiu seu rosto ficar quente, provavelmente ficando da mesma cor dos cabelos.
-Desembucha. - Ele disse, olhando em seus olhos.
-Eu dormi na biblioteca! - Ela cuspiu as palavras. - Eu estava estudando quando simplesmente aconteceu.
Ele gargalhou de novo. O que fez com que ela ficasse com raiva, por que tinha que dar satisfação para ele?
-Você dormiu enquanto estudava? Ta aí uma coisa que eu nunca pensei que ia ouvir.
-Não é como se eu gostasse de estudar sempre. - Ela cruzou os braços e virou a cabeça. - Só faço por obrigação, como todo mundo. É um trato que eu fiz com o meu pai. - Olha aí, falando coisas desnecessárias para ele de novo. Qual parte do não dever satisfação para ele, ela havia esquecido?
Gisele olhou na direção dele e se surpreendeu, não carregava mais uma expressão tão cheio de si. Estava um pouco intrigado e até mais amigável.
-Nem todo mundo tem facilidade pra estudar. Vamos entrar? - Ele apontou uma porta dupla que estava bem a frente deles. Desde quando?
Não deu nenhuma resposta e simplesmente entrou, se surpreendendo ao se ver dentro da cozinha.
-Por que estamos aqui? - Ela perguntou, genuinamente confusa.
-Eu fiquei com fome. - Foi sua resposta. Gisele suspirou em desaprovação. - O quê? Meu cérebro não funciona de estômago vazio.
Gisele deu uma risadinha, que misturou humor e deboche.
Ele a ignorou e abriu os armários superiores. Encontrou vários pacotes de pão de forma. Abriu outro e encontrou panelas. Os de baixo estavam lotados de temperos e ingredientes. Um armário no canto estava trancado com um cadeado.
-O que acha que tem lá dentro?
-Mais ingredientes? - Ela deu de ombros.
-Não seja estúpida, ninguém guarda ingredientes com cadeado. Deve ser algo melhor. - Ela revirou os olhos.
Ele deixou o armário trancado de lado e foi em direção à geladeira. Encontrou inúmeros fardos de suco de caixinha.
Enquanto ele se distraía, ela olhou as gavetas, todas lotadas de talheres. A última que abriu estava lotada de facas, de tamanhos variados. Ela retirou a maior, tinha quase a grossura do seu braço e era tão longa quanto.
-Isso conta como "arranjar uma arma"? - Ela mostrou o objeto para Lucas.
-Sabe como manejar isso? - Perguntou, com o o canudinho do suco na boca.
-Eu aprendo. Uma pessoa pode aprender bem rápido quando está sob pressão. - Ele deu de ombros e voltou a beber o suco. - Você não está nem um pouco preocupado, acho que estamos no seu sonho.
Lucas quase engasgou com o suco depois daquele comentário.
-Você ainda está insistindo nesse negócio de sonho. Eu não estou sonhando, nem você. Então pare de insistir nessa história.
-Tch.
-E não faça esse tch pra mim. - Os dois se encaravam em tom de desafio.
-Não aguento mais ficar nem mais um minuto perto de você! - Ela despejou.
-Que bom! Pois o sentimento é mutu.
-A pronúncia correta é Mútuo. - Ele desviou o olhar, mas ela pode ver que seu comentário o deixou um pouco embaraçado. - Eu vou procurar minha família. Até nunca. - Ela disse enquanto atravessava as portas de volta para o corredor.
Havia esquecido completamente que tinha uma família, que eles podiam ter se transformado em uma daquelas criaturas. Só de pensar em sua irmã com a pele verde apodrecida sentiu um arrepio.
Relaxa Gisele, você e aquele idiota não podem ser os únicos seres vivos dessa cidade pensou consigo mesma para tentar se acalmar. Funcionou apenas parcialmente.
Em dias normais, chegaria em casa em 10 minutos, mas era difícil avançar com um monte de mortos-vivos perambulando pela rua. Ela avistou um com as galochas pretas que sua vizinha sempre usava. Era uma garota tão amigável, e agora andava sem rumo pela rua na forma de uma criatura irracional.
Já conseguia ver sua casa. Estava quase lá... Ela iria forçar a entrada, pois o pai provavelmente teria trancado tudo e quando finalmente estivesse lá dentro, a irmã viria e a abraçaria forte. Estava quase lá...
Foi aí que as coisas começaram a dar errado. Ela tropeçou em uma pedra e soltou um grito, foi o necessário para atrair a atenção dos zumbis mais próximos. Gisele correu em direção à porta da frente. Estava destrancada.
Fechou a porta atrás de si, mas não rápido o suficiente. Um trio de zumbis adentrou a casa dela. Sem ter para onde fugir, subiu as escadas, as criaturas não pareciam ter inteligência o suficiente para subir atrás dela. Entrou no primeiro quarto que veio em sua mente, o da irmã.
Nada parecia fora do lugar. A cama estava arrumada, os brinquedos enfileirados na prateleira e a janela aberta com o pequeno vaso de violeta em cima. Gisele andou devagar e espiou debaixo da cama: nada. Sentiu o desesperou subir pelo estômago.
Ouviu um barulho atrás de si, olhou para trás, com o peito enchendo de esperança. Essa que logo murchou quando viu.
Era um zumbi também. Ainda tinha cabelo, mesmo que ralo, preso em maria-chiquinha. Usava um vestido xadrez azul, sua fantasia de Dorothy para o teatro de O Mágico de Oz na escola. Os sapatos de rubi brilhavam em seus pé podres.
Não...
Ela não...
Por favor, que isso não seja verdade...
Os joelhos cederam e Gisele despencou para o chão. Seu coração estava apertado e seu estômago queimava. As mãos tremiam e logo as lágrimas vieram. Nada daquilo podia estar acontecendo. Sua irmã tinha apenas sete anos, era nova demais. Ela já não conseguia mais suportar, então aceitou o destino. Se alguém deveria transformá-la em uma dessas coisas, sua irmã com certeza era a escolha mais digna. Ela fechou os olhos e esperou.
Sua espera se prolongou tanto que ela abriu os olhos. Esperava ver qualquer coisa, menos Lucas empurrando sua irmã porta afora do quarto. Ele estendeu a mão para ela e ela aceitou.
-Por que me seguiu? - Ela perguntou depois de fungar o nariz.
-Eu sabia que você não ia sobreviver sozinha. - Ela queria agradecer, mas não conseguiu. - Você tem alguma ideia de como nos tirar desse quarto? Logo, logo, eles terão arrancado a porta.
Gisele fixou os olhos na janela aberta. Lucas seguiu seu olhar e xingou.
-De novo a janela. Parece um péssimo plano.
-Eu morei aqui minha vida toda, sei o que estou fazendo. - Ela abriu o guarda-roupa da irmã e resgatou uma pulseira de dentro. Ela havia feito para o aniversário da irmã. Prendeu o objeto ao pulso, era uma pulseira em que podia ler seu nome: Giovana.
Gisele acocorou-se na janela e pulou. Lucas observou tudo e esperou ouvir o barulho de algo pesado batendo no chão, mas em vez disso, ouviu barulho de água. Ele correu até a janela e viu a garota dentro de uma piscina. Ele suspirou antes de pular também.
-Por que não me disse que havia uma piscina? - Ele exclamou enquanto nadava até a borda.
-Eu queria fazer suspense. O que fazemos agora?
-Invadimos uma loja. - Gisele revirou os olhos. - Não faça isso. Precisamos de roupas secas. Além disso, ninguém vai sentir falta.
Os dois andaram mais próximos pelas ruas. Seu alvo era a Galeria. Um beco com várias lojas de roupa no meio. Gisele apenas concordara, pois a lógica de Lucas fazia sentido. Se todos estavam mortos, por que precisariam de roupas novas?
Ela agradeceu pra todo tipo de Deus de todo tipo de religião quando chegaram sãos e salvos na loja de roupas. Ela agradeceu também pela loja não ter nenhum zumbi babão zanzando por entre as araras.
Ambos escolheram roupas e seguiram para o provador feminino. Decidiram, meio que em silêncio, que era melhor ficarem próximos um do outro. Quando terminaram, abriram as cortinas das cabines que ficavam uma de frente para a outra. Lucas a observou de cima a baixo.
-Que bom que seu gosto por roupas não é careta como seu gosto por estudos. - Ele estava sentado em um banco dentro da cabine do provador. Gisele fez o mesmo e ficou encarando a figura do garoto.
-Obrigada por não ter amassado a cabeça da minha irmã com o seu skate.
-Disponha. - Ele disse com um sorriso debochado.
-Se minha irmã está assim, isso significa que a sua família também. Não está preocupado?
Ele deu de ombros.
-Sempre fui um pouco largado na minha casa. Não me importo se viraram zumbis. Pelo menos agora eles estão mais descolados.
-Isso soou deprimente.
-Não posso fazer nada. - Ele deu de ombros novamente. Fazia isso muitas vezes.
-Se todo mundo está infectado, por que não estamos? - Ela perguntou, mais para si mesma do que para ele.
-Fiquei pensando a mesma coisa. Não cheguei a nenhuma conclusão. - Ele fitou o teto.
-O que fazemos agora? - Gisele perguntou.
-Por que fica me perguntando isso?
-Pensei que você tinha dito que sabia o que fazer nesse tipo de situação.
-Saímos da cidade? Procuramos ajuda, talvez. Seria inacreditável saber que somos os únicos seres não-comedores de cérebro no planeta.
Um barulho do lado de fora do provador interrompeu a conversa. Lucas levantou e pegou o skate em posição defensiva. Fez questão de manter Gisele atrás de si.
Saíram para encontrar meia dúzia de policiais apontando rifles para suas cabeças. Usavam proteção completa da cabeça aos pés. O soldado que estava na ponta esquerda fez um sinal e todos os outros abaixaram as armas. Gisele se adiantou:
-Graças a Deus não estamos... - Sua frase foi interrompida por um dardo que atingira seu pescoço. Ouviu Lucas chamar seu nome antes de tudo ficar preto.
***
Gisele acordou desnorteada. Lembrou-se por tudo o que tinha passado e levantou de supetão. Percebeu, por fim, que estava na biblioteca. Havia dormido enquanto estudava. Sua eu em seu sonho estava com razão o tempo todo. Era mesmo um sonho, mesmo que bem real.
Ela correu pelos corredores, que agora estava cheio de gente bem viva. Achou a sala que entrara no sonho e encontrou o pensava que encontraria: Lucas dormindo em uma das carteiras. Ela se aproximou e gentilmente cutucou seu braço. Ele acordou com um susto.
Piscou algumas vezes até seus olhos tomarem foco.
-Caso não tenha percebido, eu estava matando aula. - Ele bocejou. - Não quero que fale nada. Estragou a minha soneca.
-Não seja tão rude. A aula vai começar daqui dez minutos.
-O que eu menos preciso é de um esporro de uma cenoura. - Ele já estava se arrumando para dormir de novo quando Gisele arrastou uma cadeira para perto dele de um jeito muito barulhento.
-Evitar estudar só vai te prejudicar. Se precisa de ajuda, eu estou aqui.
-Por que está sendo gentil comigo tão de repente? - Ele perguntou, com uma expressão realmente confusa.
-Cansei de brigar. Dormir na biblioteca ajudou a clarear minha mente.
-Você dormiu na biblioteca? - Ela assentiu. Ele bufou e desviou o olhar. - Talvez uma trégua seja uma boa ideia.
Ela sorriu e ele gostou de ver aquilo.
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